Ficha Técnica
Entrevistada: India Maria de Freitas Fabre
Entrevistadores: Carol Marchesin, Joseli Mendonça, Nei Luiz Moreira de Freitas e Pamela Fabris.
Local: Guaratuba (PR)
Data: 24/06/2017
Duração: 1h 27min 42 seg
Páginas: 63
Degravação: Mariana Fernandes Ramos

Como referenciar
FABRE, India Maria de Freitas. Entrevista a Joseli Mendonça, Nei Luiz Moreira de Freitas,  Pâmela Fabris e Carolina Marchesin. Guaratuba (PR), 26/06/2017. Disponível em  https://afrosul.com.br/entrevistas/


Abreviações

CM – Carolina Marchesin.
IF – India Maria de Freitas Fabre (Dona Índia).
JM – Joseli Mendonça.
N– Ne Luiz Moreira de Freitas.
P– Pamela Fabris.
M– Sr. Michel (esposo da entrevistada, que fez várias intervenções. Por ser francês, falava com bastante sotaque. Além disso, por estar mais distante do microfone, nem sempre sua voz é inteligível, tendo dificultado a transcrição).
SI – Sem identificação na transcrição

Degravação

CM – Isso, ai começou.

JM – Hoje é dia vinte…

PF – Quatro.

JM – Hoje é dia 24 de junho. Hoje é dia…

IF–24 de junho.

JM – Hoje não é dia de São João não né? Foi ontem dia de São João?

SI – É hoje. [As pessoas presentes conversam ao mesmo tempo, sobre a data e sobre outras coisas, como o clima, sem que seja possível identificar quem fala e o conteúdo exato do que dizem]

JM – A gente tá, a gente tá na casa da Dona Índia. [Es]tamos Joseli, Nei, Carol e Pamela e vamos realizar a primeira entrevista do projeto.

JM – Dona Índia, pode dizer o seu nome completo para a gente?

IF – Meu nome completo é Índia Maria de Freitas Fabre.

JM – Índia Maria de Freitas Fabre.

IF – Fabre.

JM – A senhora nasceu que data? Quando a senhora nasceu?

IF – 25, 25 do 7 de 40.

JM – 1940. Nasceu em que cidade Dona Índia?

IF – 76 anos.

JM – A senhora tem 76 anos. Que cidade que a senhora nasceu?

IF – Como?

JM – Qual cidade a senhora nasceu?

IF – Curitiba.

JM – Em Curitiba. Que bairro que era?

IF – Água Verde.

JM – Água verde. Como que era o bairro de Água Verde na época que a senhora era criança?

IF –Pois o bairro de Água…Quando… quando eu nasci lá… mas eu vou dizer a partir da data que eu comecei a conhecer.

JM – Certo.

IF – Eu morava numa das ruas principais de lá da Água Verde, que é a Avenida Getúlio Vargas, né? Aliás naquela época não era asfaltada, mas com o decorrer dos tempo ela foi asfaltada, foi arrumada, aonde meu pai tinha casa própria e ele comprou essa casa própria com o trabalho dele, que meu pai era preto, sabe? Ele é da raça negra, mas a minha mãe não, a minha mãe era branca, então aquela luta de vida eles conseguiram comprar uma casa na Getúlio Vargas e era uma casa muito boa, era uma classe média, não alta nem baixa, era estável, né?

JM – Como era o nome do seu pai?

IF – Mário Moreira de Freitas.

JM – E da sua mãe?

IF – Nair Barcelos de Freitas.

JM – Qual que era a profissão do seu pai?

IF – Meu pai, ele trabalhava no Correio. Agora, naquela época que ele trabalhava eu não sei se ele era apostalista ou era chefe de seção, ele era uma coisa ou outra, provavelmente ele era apostalista porque ele lidava com as cartas no Correio… ele distribuía para os empregados.

JM- E sua mãe trabalhava fora? Trabalhava em casa?

IF – Não, minha mãe trabalhava, minha mãe foi professora durante muitos anos minha mãe lecionou, mas depois deixou, ela não lecionava mais.

JM- Certo, e aí o seu pai com esse… com esse emprego… esse trabalho dele ele conseguiu comprar essa casa…

IF – Comprou essa casa na Getúlio Vargas.

JM – Na Getúlio Vargas. E a senhora tinha mais ou menos que idade quando ele comprou essa casa? Já era…

IF – Quando meu pai comprou?

JM – Criança é?

IF – Ah eu não sei eu nasci lá.

JM– Era bem criança… ah a senhora nasceu lá, já…

IF – Nasci lá, na casa.

JM – Entendi.

IF- Não sei.

JM – E ali a senhora morou muito tempo?

IF – Ah morei, a vida toda morei ali, só sai de lá… [sussurra contando]Eu sai de lá com 22 anos.

JM- Ah então desde 1940, até… depois de 1940…22 anos depois a senhora saiu de lá, né? E como é que foi viver a infância lá nessa casa? A senhora, senhora tinha irmãos nessa época lá?

IF – Como?

JM – Tinha irmãos?

IF – Tinha.

JM – É…

IF – tinha, tive cinco irmãos.

JM – Moravam todos lá?

IF – Todos lá.

JM- Quais que eram os irmãos? Assim… o mais, o mais velho?

IF – O primeiro era Vicente Moreira de Freitas, depois era Olímpio Moreira de Freitas, Mário Moreira de Freitas, Maria da Luz de Freitas e eu.

JM –  ..e a senhora. A senhora é a mais nova?

IF- Sou a mais nova.

JM – É… tá certo. E como que era a infância lá, Dona Índia?

IF – Olha sinceramente a minha infância, foi uma infância muito boa. Porque nós não era rico, mas vivíamos bem. Havia assim um respeito em família. O meu pai, aquela época, meu pai dava aquele respeito mútuo da família, que ele falava…só olhava e a gente já sabia o que ele queria. Então houve uma… um crescimento dos meus irmãos muito respeitoso, todo eles, não tenho… não teve assim… um que possa ser assim de todo… todos eles foram ótimos, graças a Deus.

JM – E como que é vocês… vocês brincavam? Podia brincar na rua aquela época, né? Hoje a Getúlio Vargas é um…

IF – Não, não brincava.

JM – Não?

IF – Porque é como não… Tinha hora certa pra brincar aquela época, na época em que meu pai e minha mãe estavam vivo tinha hora certa que a gente podia ir brincar, agora chegou 16 horas… 17horas… vá brincar, quando for 17 horas e 30minutos estejam em casa, toma banho e chega…tinha tudo, era marcado.

JM – Mas quando podia, podia brincar na rua… assim? Tinha…

IF – Tinha uma coleguinha ou outra, mas não aquele tumulto como é agora. Não… [como]agora não tinha não.

JM – E a senhora lembra das brincadeiras? Que brincadeiras que tinham… assim?

IF – Brincadeiras, caracol.

JM – Caracol é?

IF – Pular corda.

JM – Como que é caracol?

IF – Como é que é o caracol?

JM – É.

IF – Aquele que risca o chão e jogava pedrinha. [Nesse momento algumas pessoas presentes respondem “amarelinha”].

JM – E vai pulando?

IF – É.

JM – E riscava na forma do caracol ou riscava reto?

IF – É… não… fazia aquele desenho no asfalto e jogava a pedrinha e ia pulando.

JM – …a pedrinha e ia pulando… Eu acho que eu brinquei disso.

JM – Então eram quantos irmãos?

IF – Cinco.

JM – Cinco irmãos… E foram todos para a escola?

IF – Todos.

JM – É? E que escola que a senhora estudou?

IF – Eu me formei, eu estudei quando criança no colégio… difícil de lembrar agora, tantos anos.

JM – Era lá mesmo?

IF – Lysímaco Ferreira da Costa… eu tirei o Primário.

JM–Lysímaco?

IF – Depois daquela época foi mudando, passou o Lysímaco Ferreira da Costa, teve o Segundo Grau no ginásio… que agora não é mais ginásio né? Eu tirei o Ginásio lá, depois fizeram uma mudança total no estudo naquela época da época do Ney Braga e passou a ter Segundo Grau… é Normal daí eu fiz esse Curso Normal, depois eu peguei…é os anos passaram uns problemas particulares na minha vida… que isso eu não vou expor eu fiz faculdade e tirei Pedagogia.

JM – Então a senhora fez normal e fez Pedagogia?

IF- Fiz pedagogia.

JM – Aham.

IF – E lecionei durante 12 anos.

JM – A senhora lecionou onde? Lá em Curitiba?

IF – Em Curitiba.

JM – É professora?

IF – Sou professora. Mas não fiquei lecionando porque ganhava muito pouco, daí disse, “ah, não eu não vou ficar assim, eu vou dar um jeito”, daí eu fiz um concurso no Estado, onde eu passei e fui trabalhar na FUNDEPAR. Agora… não… foi extinta a FUNDEPAR, né? Não tem mais a FUNDEPAR.

JM – Certo. E a FUNDEPAR era uma… era uma empresa do governo, assim? Era um órgão do governo?

IF – Quem?

JM -A FUNDEPAR.

IF – Era órgão do Governo, do Governo. Era da Secretaria da Educação.

JM–Ah é da Educação. Você fazia trabalho administrativo lá?

IF– Isto.

JM – Gostava de dar aula?

IF – Olha, aquela época dar aula era melhor do que agora. Agora não daria mais aula, naquela época dava, porque a gente tinha domínio sobre os alunos, né? A gente dominava os alunos e eu dominava meus alunos. Então eu gostava, até… o limite… Mas agora não daria mais não.

JM – Mais difícil…

IF – Não, agora não, porque eles não respeitam nada, não querem nada com nada, eu acho isso um absurdo, mas é verdade. Tá….  tá tudo gravado?

JM – Dona Índia a senhora disse que morou lá na Água Verde até 22 anos né? E a senhora saiu de lá e foi morar onde?

IF – Aonde que eu sai de lá?

JM – A senhora saiu de lá jovem então né… assim…

IF – Era jovem.

JM – Era solteira?

IF – Eu sai de lá e fui morar na Vila Fanny.

JM – Na vila Fanny.

IF – Na Vila Fanny. Meu pai vendeu lá e comprou outra casa na Vila Fanny e eu fui morar lá.

JM – E essa época da… da juventude…assim… como é que era? Vocês se divertiam? Os irmãos saiam juntos? Tinham os amigos? Como é que era… assim…?

IF – Eram todos unidos.

JM – É. Saiam passear juntos?

IF – Não, passear não, porque geralmente eles… é…rapaz… já mais…assim né… eram três homens… Não… passear não. Eles tinham a vida deles… assim…e eu tinha minha irmã né, que não era assim…muito… né, nós não éramos muito amigas, éramos mais ou menos… assim…

JM – Como que a senhora se divertia na juventude? Como que era…?

IF – Como eu me divertia?

JM– Uhum.

IF – Isso é muito difícil dizer, porque meu pai e minha mãe eram pessoas que se davam muito respeito, então não podia dizer que ia sair… que eu ia pra lá pra cá não. Tinha a data certa que minha mãe ia ao cinema, matine e a gente ia. Se tivesse um baile no Clube Água Verde, que existe ainda, meu pai e minha mãe levava. Era esse o divertimento. E estudar, né?

JM – Então o clube que a senhora frequentava, esse lugar era o clube Água Verde? Que tinha lá…

IF – Clube Água Verde.

JM – Como que era esse Clube?

IF – O Clube?

JM – É.

IF – O Clube era um clube muito bom, um dos melhores da época que tinha lá. Era um dos melhores da época, aquele clube, o Clube Água Verde. Esporte Clube Água Verde, um dos melhores da época.

JM- Tinha baile? Tinha festa?

IF– Tinha baile. Tinha o carnaval, tinha baile sim.

JM – Como que era o carnaval?

IF – Hein?

JM – Como que era o carnaval, era bom?

IF – Era, era bom.

JM – Eram bailes assim, dentro do clube?

IF – Era baile, baile mesmo, não era essas coisaradas, era pulo, cantar pular né? Era muito bom.

JM – É bom? E me diz uma coisa Dona Índia, a senhora disse que seu pai era um homem negro, né?

IF – Era, não, ele não era negro… era preto meu pai.

JM – Ele era preto?

IF – Preto.

JM – E assim, uma coisa que a gente escuta dizer é que Curitiba é uma cidade que… que às vezes é muito racista… assim. A senhora sabe se seu pai sofreu algum problema de preconceito, de discriminação, por causa da…

IF – Não, não. Porque… como é que eu vou falar pra você? Meu pai era preto, mas ele se dava muito respeito, ele era aquele tipo de preto que… certo…entende? Que não dava… assim… muita oportunidade pras pessoas dizerem alguma coisa pra ele. Ele se dava muito respeito, tanto em casa como na rua, entende? Não, nunca sofreu preconceito não.

JM – Ele trabalhou quanto tempo no…

IF – No Correio?

JM – No Correio?

IF – A vida dele toda. Depois ele aposentou-se né, no Correio.

JM – Certo. E antes de trabalhar no Correio ele não teve outro trabalho?

IF- Eu acho que não porque quando eu nasci ele já trabalhava lá no Correio, se teve eu não sei… se teve eu não sei.

JM- E na escola como é que era Dona Índia? A senhora gostava de ir pra escola?

IF – Se eu gostava?

JM – É?

IF – Gostava. Eu também não teve preconceito comigo porque eu sempre fui muito autoritária, eu sempre valorizei muito a minha pessoa, entende? Assim, eu aprendi a ser gente, eu aprendi a me valorizar entende? Com a… com o ensino que eu tive em casa da minha mãe e do meu pai, eu nunca deixei alguém… como é que eu vou falar… assim… deixar ter preconceito comigo. Tem preconceito, fique lá e eu fico aqui, não se aproxime.

JM – Se acontecesse, como que a senhora agia?

IF – Como que eu agiria?

JM – É?

IF – Eu não agiria, eu deixaria de lado, eu simplesmente não… Porque eu não gosto de brigar eu gosto de conversar, eu falo alto porque eu fui professora né, eu não tenho culpa.

JM – É eu sei… [riso]

IF – Eu gosto de conversar e não discutir porque na minha casa não havia discussão, não havia briga, quer dizer que quando fica muito alto eu fico doente, eu fico com dor de cabeça, eu não gosto de briga. Então, nunca teve preconceito comigo, porque eu sempre fui bem ajeitadinha, sabe? Pobre mas sempre ajeitadinha… Então… entende?

JM – E a senhora chegou a presenciar assim… cenas de preconceitos e discriminação que aconteceram com outras pessoas, não com a senhora?

IF – Na minha época?

JM – É. Na escola?

IF – Não.

JM – Não?

IF – Não, não eu nunca vi… assim… não… não…

JM – A senhora gostava de estudar, qual era matéria que a senhora mais gostava na escola?

IF – Português, eu sou professora de Português.

JM – É? É professora de Português, é? Tinha facilidade, gosta de ler? Gostava de ler?

IF – Leio bastante, leio bastante.

JM – Seus pais achavam importante o estudo?

IF – Ah sempre achei… porque meu pai… meu pai insistia que a gente estudasse, então achei muito importante, muito importante.

JM – Todos os seus irmãos estudaram?

IF – Não, não… só o pai dele [aponta para Nei, seu sobrinho um dos entrevistadores]. O pai dele chegou a estudar o Segundo Grau no Colégio Bom Jesus.

JM – O Mario?

IF – Os outros não, não…

JM – O Vicente?

IF – Não quiseram estudar muito, mas tiraram o… acho que a Quinta Sexta Série só… mais não foram… Agora, o pai dele [do Nei] estudou bastante, meu irmão mais velho estudou bastante.

JM – Então a senhora formou-se professora, o pai do Nei estudou também.

IF – Estudou.

JM – Que profissão que ele…

IF – O pai do, o pai do Nei?

JM – É.

IF – Olha a profissão dele certa… porque meu irmão ele era um rapaz assim… que trabalhava no que aparecesse, entende? Só não trabalhava em serviço pesado porque não gostava, mas se convidasse ele pra fazer alguma coisa ele ia, qualquer coisa ele fazia, meu irmão. Ele, quando ele se aposentou ele trabalhava na loteria, numa loteria, numa loteria ele trabalhava… depois não sei mais.

JM – Aí… a senhora teve outro irmão que… que… qual a profissão que ele tinha? No que, que ele trabalhava?

IF – Meu irmão mais velho ele era… ele trabalhava na administração, o outro trabalhava como marceneiro, fazia móveis. E o mais novo, que era o Mario, trabalhava no DOE departamento de estrada e rodagem… [refere-se provavelmente ao DER – Departamento de Estradas e Rodagem]

JM – Certo…

IF – A minha irmã não trabalhava.

JM– Então… ah… os cinco filhos… assim… estudaram pelo menos até a quinta série e outros… né… não seguiram adiante…

IF – Todos estudaram.

JM – Quem que era mais bravo em casa o pai ou a mãe?

IF – Ali na minha casa não existia o mais [bravo], sabe por quê? Porque eles eram assim… um casal… assim… que agora não existe mais… aonde come um come outro. Se meu pai fizesse assim [balançou a cabeça expressando negativa], minha mãe [balançou cabeça da mesma forma]. Depois eles iam conversar em particular, ver se tava errado ou se tava certo. Não na frente dos filhos, não. Eles tinham uma coisa de conversar. Mamãe não dizia na frente dele… não, não está certo… iam conversar particular, ia ver o que iam fazer o que não iam.

JM – Oh Dona Índia, e, a senhora…Vocês contavam história sobre a família em casa… assim… De falar sobre as pessoas que já não estavam mais, que já haviam morrido? Vocês falavam coisas da família? Tinham memórias da família?

IF – Olha da história da família da minha mãe quase não sei. A história do pai é a seguinte… Meu pai era filho de escravo. Meu vô… meu vô foi escravo, Vicente Moreira de Freitas, o pai do meu pai, e ele compro a carta de alforria dele com o trabalho, entende? Ele era muito honesto, assim eu ouvia dizer, eu não participei porque eu não vivi, mas ele era muito honesto. Ele trabalhou tanto que ele conseguiu comprar a carta de alforria dele, entende? Aí, diz que ele escreveu num tubo que desapareceu… eu não sei… um tubo que tá escrito em ouro…em ouro… que meu vô disse assim: “agradeço aos meus senhores [faz um resmungo]…o resto eu não… o resto eu não sei… o resto… assim da vida dele… assim não sei. Só sei que ele era um homem muito honesto também. Ele era preto, ele era muito honesto. Quer dizer que era uma família que… que dá orgulho de ser da minha família. Da parte da minha mãe eu não posso falar porque eu não conheci muito bem. Meu… meu vô, pai do meu pai, ele tinha uma herança. Ele era tão rico que a Rua Saldanha era metade dele, a metade da Rua Saldanha Marinho…

JM – Seu vô, seu vô que é o…

IF – Pai do meu pai.

JM – Pai do seu pai?

IF – Pai do meu pai, eu não conheci.

JM – Aham.

IF – A metade da Rua Saldanha Marinho era do meu, do meu vô.

JM – Uhum.

IF – Foi a herança que ele deixou. Ele era muito rico, meu vô. Quer dizer que naquela época da escravidão… que ele foi escravo… ele era muito honesto e os senhores dele deram pra ele a fortuna, deram herança pra ele, sabe? Então aí que ele ficou rico.

JM – Isso a senhora ouvia em casa… contar em casa?

IF – Contar em casa, meu pai que falava.

JM – Seu pai que falava?

IF – Falava.

JM – Humm…

IF – Falava. E eu assisti muitas coisas porque eu conhecia a rua que era do vô.

JM – Saldanha Marinho?

IF – Saldanha Marinho… era uma quadra inteirinha. Tem um rio, tem um rio ali na Saldanha Marinho… Não tem um rio?

JM – Eu não me lembro se tem ou não tem um rio ali.

SI – [Nesse momento algumas pessoas presentes falam: “tem um rio ali”]

IF – Aquela parte de cá era todo do meu vô. Duas ou três quadras dali.

JM – E tinha casas ou eram terrenos na Saldanha Marinho?

IF – Pois isso aí eu não sei… isso aí eu não sei… eu não lembro.

JM – Seu pai falava que era uma parte ali, uma…

IF – É, é era do meu pai também, mas meu pai não quis… ele deu pra minha tia, irmã dele.

JM – Pra irmã?

IF – Pra irmã dele.

JM – Quantas irmãs tinha seu pai? Você lembra?

IF – Agora você me pegou… que eu não sei. Quantas irmãs meu pai tinha?

NF – Tinha a Vicentina.

IF – Olha, eu lembro de duas só, mas diz que tinha mais. Me lembro que tinha a Vicentina e tinha a Leonídia.

JM – A Vicentina e a Leonídia. Então ele deve ter deixado pra uma das duas a herança…

IF – Não tinha mais.

JM –Ahn?

IF – E essa tia Vicentina, ela queria a herança toda pra ela e não deram e ela suicidou-se por causa da herança, ela tomou formicida, por causa do dinheiro, aí…ela matou-se, tia Vicentina. Aí… o resto…depois…eu não sei, porque eles se casaram ficaram tudo lá, e lá tá ainda, aquela quadra que [inaudível], que ainda é do meu avô e não foi tudo feito escritura não… e se foi feito eu não assino…

JM – Uhum. Por que a senhora nunca assinou nada?

IF– Não. E não assino, porque tem uma casa lá que era do tempo do meu avô, tem uma casa ali em cima que moravam… moravam um primo meu lá.

JM – A senhora sabe a profissão que seu avô tinha?

IF – O meu…pai do meu pai?

JM – É.

IF – O pai do meu pai era mestre de obra, era mestre de obra.

JM – Então foi trabalhando como mestre de obra, ainda como escravo, que ele conseguiu comprar…

IF– Não… depois que ele foi libertado que ele foi trabalhar como mestre de obra… que ele comprou a alforria dele. Daí ele construiu a catedral, meu vô construiu a Catedral aqui de Curitiba, e lá na Catedral… não sei se tem ainda, não sei o que… que disseram para lá, pro meu avô… e ele tava trabalhando com a marreta na mão, mas ele não trabalhava mais com marreta não, mas ele estava trabalhando com a marreta na mão, fazendo alguma coisa e quando… uma pessoa falou lá.., ele pegou a marreta meteu na pedra. Acredito que tá lá ainda… ele quebrou a pedra no meio, uma pedra do tamanho desse sofá aqui, deve ta lá não sei…

JM – E a senhora sabe por quê?

IF – O que?

JM – A senhora sabe o porquê que ele quebrou?

IF – Não sei.

JM – Não?

IF – Acho que foi alguma coisa que disse, que magoou ele, né?

JM – Humm… Isso seu pai contava, também?

IF – Contava.

JM – É… seu pai falava muito sobre o pai dele? Sobre o seu avô?

IF – Falava bastante… falava… O meu vô… ele… ele casou com uma índia, a esposa do meu avô, a minha avó, era índia. Ele caçou ela no mato, pegou ela e casou com ela.

JM–Isso seu pai falava também?

IF – Falava, tinha umas fotografias, mas sumiu tudo, me levaram tudo embora.

JM – Vocês tinham… quando… quando assim… quando viviam com o pai, quando eram criança, jovem, tinha fotografias que ele mostrava? Tinha fotografias do avô?

IF – Do meu… pai do meu pai?

JM – É.

IF – Tinham um quadro enorme na parede. Cadê aquele quadro? Tá com você Nei?

NF – Não.

IF – Onde tá o quadro?

NF– Mas eu tenho aqui. [refere-se a fotografia do avô que tem no computador].

IF – É um quadro preto, grande, gravado com ouro em volta… tá meu vô e minha avó.

JM – No mesmo quadro? Ou tinha um com cada um?

IF – No mesmo quadro.

N – Tem…

IF – Eu queria saber quem tá com esse meu quadro, eu não quero mais pra mim porque… eu não quero mais, mas gostaria de saber.

N – Esse aqui ó… [Nei mostra a Dona Índia a fotografia de Vicente Moreira de Freitas, o avô de D. Índia, que está em arquivo no seu notebook]

IF –[olhando a foto] Não, esse aqui é a fotografia de quando minha mãe fez bodas de prata… foi tirada essa aqui… bodas de prata…foi tirada.

JM – Você tá aí?

IF – Eu tô aqui ó.

N – Menina.

JM – Uhum.

IF – Esse é meu pai, olha como ele é altivo. Essa é minha mãe, como é bonita. Essa é minha irmã, esse é meu irmão, esse é o pai do Nei e esse é meu outro irmão.

JM – Esse aqui é o…

IF – Mário.

JM– Mário… Esse é o Vicente e esse é?

IF – Olímpio.

JM – Olímpio. Ela é a…?

IF – Maria.

JM – Maria, sua mãe seu pai e você.

IF – Minha mãe meu pai e eu.

JM – Que festa que era essa?

IF – Hein?

JM – Quando… que festa era essa que vocês fotografaram?

IF – É minha mãe estava fazendo bodas de prata.

JM – Ah, bodas de prata.

IF – Bodas de prata.

JM – E esse… esse quadro que tinha… tinha em casa, na sua casa tinha o quadro … ?

IF – Tinha em casa, realmente na casa da minha mãe, porque tava na parede assim…

JM – Na casa da sua mãe, ti.. tinham a foto do teu avô e da tua avó?

IF – É.

JM – E em que ocasiões que eles falavam do … ?

IF–[olhando outra foto] Essa foto aqui, eu quero saber, esse… essa foto aqui foi tirada da minha casa escondido.

JM – Essa foto …

IF – Aqui eram do meu avô.

JM – Isso aqui era quadro grande?

IF – Era um quadro grande, tava o meu avô e minha avó junto… esse aqui…

JM – Ele era bem bonito,hein?

IF – Ele era. Ele era.., ó. Ele era, ele era um nego assim que … bonito ele né ? Mostra pro Michel [seu esposo] meu vô.

M – É seu vô?

IF – Aí ele já era…

M –É a mesma foto que está no cemitério?

N – Sim, é a mesma foto.

IF – Não… não tá no cemitério essa fotografia.

N – Tá sim… tem também.

JM – Tem uma reprodução dela.

IF – ahn?

JM – Tem uma reprodução dessa fotografia no túmulo dele, no jazigo lá, mas eu acho que é reprodução né, né Nei?

N –Hum… E tem uma outra …

IF – Onde que tá esse quadro Nei?

N – Esse quadro eu nunca vi tia.

IF – Hein?

N – Esse quadro eu nunca vi.

JM – Aquela foto ali foi feita a partir da foto que está no túmulo dele.

IF – No quadro…

JM – É, no túmulo.

IF – Aquele foto que o Nei mostrou está no quadro que sumiu. Cê sabe onde é que tá esse quadro?

N – Não tia,  eu… eu nunca vi esse quadro. Deveria estar lá sabe aonde? Na… no Operário… no Clube Operário.

IF – Não, lá tem um…

N – Lá não tem mais.

IF – Por que não tem?

N – Destruíram tudo, destruíram tudo… Tem essa aqui dele.

IF– Da onde essa aí? Eu essa eu não conheço, não sei.

JM – Essa aqui é no Operário.

IF – Aqui é meu pai né? Não… meu pai?

N – Não… seu avô.

IF – Meu avô?

N – Sim, o Vicente. [risos]

IF – Nossa!

JM – Mas você …

IF – Parecido com meu pai né?

N – Não, seu pai é mais novo do que isso.

JM – Mas o seu pai e seu avô conviveram? [Nessa parte da entrevista, Sr. Michell, Nei, Joseli e Dona Índia. falam ao mesmo tempo. Sr Michel fala sobre o bigode do avô de Dona Índia, no entanto, não é possível entender palavra por palavra].

IF – Ah…eu não sei.

JM – Quando você nasceu o seu avô já era morto?

IF – Sim, já era falecido.

JM – Já tinha falecido

M – O bigode dele é sagrado.

IF–Ah, meu avô pagava conta com o bigode [risos]. Ah meu filho, eu sou muito orgulhosa do meu avô e da minha… da minha raça, dos meu preto lá… sou muito orgulhosa dele.

JM – Isso, então quando o pai falava deles, falava com orgulho?

IF – Falava com orgulho.

JM – Sentia orgulho…

IF – Com orgulho, até mesmo da minha avó, porque minha avó era índia, ele falava com orgulho da minha avó. Não conheci…Aliás o meu irmão mais velho conheceu, o pai do Nei conheceu, eu não conheci, eu cheguei… não dava pra conhecer.

JM – E a Pamela tá fazendo um estudo sobre a Sociedade Operária, essa que tá na frente… da que seu avô esta na ali frente dela [referindo-se a foto que foi mostrada].

IF– Sei.

JM – A senhora conhece essa… conheceu, frequentou essa Sociedade Operária?

IF – Eu não frequentei, mas eu conheço, conheço a Sociedade Operário. Porque no dia… ai não me lembro mais… no dia 28 de janeiro parece… peraí… existe… porque lá era uma sociedade, naquela época, que era frequentada por mulheres da vida fácil, e nós não… meu pai jamais deixaria a gente ir, mas tinha um dia no aniversário dessa sociedade que a gente podia ir… que só entrava família… era dia 28 de janeiro.

P – A data da fundação dela, 28 de janeiro.

JM – É?

P – É, do Operário, isso…

IF – Dia 28 de janeiro. Só entrava família, não entrava ninguém que não fosse família.

P – E o seu pai frequentava lá outros dias ou ele só ia na festa também?

IF – Meu pai?

P – É.

IF – Não, ele não frequentava, ele só ia na festa.

JM–E.. e assim… assim… como… não era um lugar que as famílias frequentassem… assim?

IF – Não, família mesmo não, só no dia 28 de janeiro, que era o aniversário da sociedade. Nos outros dias era uma sociedade pública, ia todo mundo lá… ninguém… família não…a… não sei. Meu pai não deixava a gente ir, né.

IF – E ele falava o porquê não… assim? Ele explicava?

IF – Falava.

JM – E o que ele falava?

IF – Não levava mesmo.

JM – Mas ele explicava o porquê?

IF – Ahn?

JM – Ele explicava o porquê não levava?

IF – Não, ele explicava porque era baile público, né? Baile público família não vai, né.

JM – Entendi… tá…

IF – É…

JM – É, então o baile, quando ia no baile, o baile era no Água Verde, né? Lá no Clube Água Verde?

IF – É.

P – Aí ia a família inteira, ou ía….

IF – Como?

P – Ia todos os irmãos juntos no baile?

IF – No baile?

P – É? Do Água Verde.

IF – No baile do Água Verde? Ah ia todo mundo, ia meus irmãos, a minha irmã aquela época…ia todo mundo.

P – E o pai também?

IF – Pai, mãe, tudo. No Operário não, nem ponha isso aí, que se isso aí fala que eu fui no Operário vão dizer de mim? Eu tô ferrada… não… eu não… eu só ia no baile no aniversário da Sociedade. [risos]

P – Aham.

JM – A gente não vai divulgar nada sem sua autorização, viu Dona Índia? A gente tá gravando, mas depois a gente vê se a senhora autoriza a divulgação e tudo que a senhora não quiser que a gente divulgue a gente não divulga, viu? Pode ficar muito tranquila com isso, viu?

N – Michel, Michel, [ partir desse momento eles começam a ver fotografias. Assim, os nomes ditos a seguir são referentes às pessoas que eles vêem nas fotos] a vó com o primo Vicente.

M – A é?

N – Vicente Brito.

IF – Quem era? Quero ver. Não conheço.

N – É a Nair com o Vicente Brito.

IF – Quem?

N – A Nair com o Vicente Brito.

IF – Ah, esse era meu primo, esse aqui… eu vou falar.., [riso] esse aqui era Federal do Exército. Esse aqui que tinha casa lá na Saldanha Marinho, esse aqui era sobrinho do meu pai.

JM – Uhum.

N – A mãe dele… [mostra outra foto]

IF – Quem é que tá com ele aqui?

N – A Nair, sua mãe.

IF – A minha mãe?! [surpresa]

N – Jovem né? Bonita?!

IF – A mamãe então aqui tava novinha, meu deus eu nem … [emoção] olha a minha mãe… essa é minha mãe…Esse aqui é quem?

N – Vicentina, a tia, mãe do Vicente, mãe dele.

IF – Essa que se suicidou… não… essa não…

N – Essa.

IF – Não.

N – Essa que…, essa que se suicidou, tá certo.

IF – Não, essa daqui não se suicidou, a que se suicidou foi a tia …

N – Palmira?

IF – Não, agora esqueci o nome dela. Tia Leonídia, essa aqui é a tia Leonídia? Não?

N – Não, essa é a Vicentina.

IF – Não, não foi essa que se suicidou não.

N – Foi, foi a mãe do Vicente.

IF– Certo, foi a tia Vicentina que se suicidou, a mãe desse aí.

N – A mãe dele.

IF – A mãe desse aí. E esse homem quem é?

N – O marido dela.

IF – Ela conheci, mas eu era muito pequena… eu não me lembro bem dela, mas ela era fera, ela era professora.

JM – É?

IF – É. Essa era irmã do meu pai…Essa que matou-se…

N – O Mauricio…

IF – Hein?

N – …o Mauricio…

M – Bonita…

N – … quer te conhecer, quer te rever. Faz tempo que ele não te vê e ele quer rever você. Lembra do Mauricio?

IF – Lembro, mas ali não dá… [fica insegura de continuar falando]

JM – Quer que desliga? Quer que desligue?  [riso]

IF – Não. Que foi… Essa família do meu pai era muito complicada, muito complicada, isso pode por na… por causa de dinheiro, era muito dinheiro na família do meu pai… Meu pai não tinha dinheiro…

JM – E era dinheiro que veio do teu avô?

IF – Ahn?

JM – Era dinheiro que veio da herança do teu avô?

IF – Da herança do meu avô.

JM – Que foi escravo?

IF – É. Esse dinheiro que deu toda a complicação na família. Eles brigaram, ela matou-se, por causa desse dinheiro, essa herança muito grande né? Era ouro. Esse quadro que sumiu – eu não faço questão do quadro, mas eu queria ter uma lembrança dele…- ele era todo cravejado de ouro, mas não era esse ouro de assim… era ouro… ouro vermelho… ouro caríssimo, né? Então… sumiu… sumiu, e esse tubo tem uma carta escrita com esse ouro. Não sei como é que eles escreveram, acho que eles derreteram o ouro e escreveram… e tá falando da libertação dele, né. Até me emociona que ele agradece os senhores dele, por causa desse… de terem educado ele,…dado estudo, né? Então ele agradece muito. Escreveu com ouro…

JM – E quem falou desse tubo pra senhora também foi seu pai?

IF – Meu pai.

JM – A senhora nunca viu?

IF – O que? O tubo?

JM – É.

IF– Não… roubaram da minha casa.

JM – Ah você tinha esse tubo, você chegou a ver?

IF–Tinha… ele vivia pendurado na parede, ninguém mexia naquele tubo, aquele tubo era sagrado, tinha a carta de libertação do meu avô ali, mas sumiu… e o quadro, certo? O que eu posso falar é isso.

JM – E o seu pai contava essas histórias do seu avô só na família, ou contava pra outras pessoas também?

IF – Não, não contava pra ninguém.

JM – É? Só contava pra vocês.

IF – Ele era muito… ele era muito discreto. Não vê a cara dele aí, como é que é? Nós adorava ver o jeito do meu pai. Engraçado essa fotografia do meu vô tá que nem meu pai… igualzinho… meu pai era assim. [risos]

JM – É a senhora olhou o avô pensou que fosse o pai, né?

IF – É! [risos] Ele era muito assim… não falava muito não.

JM – Ele não falava muito, mas quando ele contava essas histórias ele contava para os filhos todos… assim?

IF– Contava. Ele… às vezes… assim… a gente tava na mesa e ele conversava, ele contava, ele falava muito do pai dele, né. Da mãe dele ele falava bastante, mas… assim… da história da minha avó eu não sei muito bem. Sei que ela era uma índia pura, ela não era negra, porque os índios não são negros, tem que tirar isso da cabeça das pessoas, dizer que os índios são negros, eles não são negros, eles são vermelhos, alguns são vermelhos outros são amarelos. A minha avó ela era mais pra amarela, ela era índia, tinha o cabelo bem duro, assim, o cabelo bem duro, mas pele clara, entende? Ela tinha pele clara. Ela era índia pura mesmo. Agora da onde eu não sei… eu sei que ele caçou ela em Paranaguá.

JM – Uhum.

IF– Agora… onde eu não sei.

JM – E a senhora, quando eu disse que o seu avô era negro, dona Índia, a senhora disse não ele não era negro ele era preto. Qual que é a diferença?

IF – O negro sou eu, eu sou negra, preto é aquilo ali ó… Preto é a tua blusa.

JM – Uhum. Então é tonalidade mesmo, né?

IF – É.

JM – Mais escuro. Seu pai era mais escuro?

IF – Meu pai era preto.

JM– Uhum…

IF – Era preto, não era negro. Era preto, tinha a pele preta mesmo, bem escura, mas tinha o cabelo bem liso, aquele cabelo liso… assim… de índio.

JM – De índio, é?

IF – Era preto o meu pai.

JM – Porque é… E a sua… da… da mãe dele ele falava pouco então? Falava …

IF – Da minha vó ele falava, mas ele não falava muito, porque talvez ele nem soubesse muito, né? Só sei que ela era índia. Ela era índia.

JM – A senhora lembra da imagem dela assim, lembra de ter visto ela?

IF – Lembro, estava …

JM – A senhora tinha fotografia também?

IF – É?

JM – Na sua casa tinha fotografia dela?

IF – Tinha ela nessa fotografia que o Nei me mostrou. Ela e o meu vô junto, tavam os dois juntos. Preciso achar esse quadro, os dois juntos na fotografia. Como é que tá sozinho meu vô ali? Não tô entendendo…

N – É que eu peguei do… do túmulo.

IF – Tinha que estar junto, ela.

N – É, mas eu tenho ela aqui.

JM – A gente tem a foto, mas eu acho que alguém pegou a foto do quadro e tirou só a foto dele e pegou só a imagem dele pra colocar no túmulo.

IF– Não… mas ninguém faria isso sem minha autorização, porque o túmulo lá é meu.

JM – É? A senhora já viu a fotografia dele no túmulo?

IF – Já.

JM – Já?

IF – Mas não era essa aí não.

N – Ah não era essa?

IF – Não.

N –Não era essa? Ah então não sei qual que é tia.

IF – Não é essa fotografia.

N – Essa aqui né? [mostra foto]

IF – Olha aí, minha vó… essa é minha avó.

JM – Não eram dois quadros?

IF – Hein?

JM – Um do lado do outro?

IF – Eram.

JM – Eram então…

IF – Teria que estar aqui o meu avô, junto com ela, porque esses quadro são os dois juntos, como é que tá sozinha?

N – É que foi cortado.. só tia. Ó tia pra …

IF – Mas quem cortou isso?

N – Não, aqui só né, lá …

IF – Essa é minha avó Mi…[mostrando a foto ao esposo]

M – Uhum.

IF – A mãe do meu pai.

N – A Olimpia.

M – A é…?

N – Olimpia, né?

M – Conheço essa foto, eu já vi.

N – Sim, a Olimpia.

IF – Essa era minha avó.

N – Bem bonita também.

JM – A senhora tem foto sua?

IF – Hein?

JM – A senhora tem foto?

IF – Foto minha? Não.

JM – Não… E o teu pai falava alguma coisa em casa, Dona Índia, sobre a Sociedade Operária, sobre a Treze de Maio? Porque seu avô participou desses meios.

IF – Ele participava porque ele era o diretor da Operários, né?

JM – É… é…. Da Treze de Maio também, né? Da Sociedade Treze de Maio…

IF – A sociedade Treze de Maio eu não conheço. Eu não conheço aquela sociedade lá… mas ele participava lá. E aquela sociedade tem uma história muito grande, a Treze de Maio, né ? Que era um grupo de pessoas que eram dono. Agora eu não sei como é que tá lá, porque aquilo ali tinham um grupo de pessoas que eram dono. Muitos já morreram, acho que todos já morreram… então fica a família, porque aquilo dali tem que ter uma herança, aquilo ali é uma herança… é uma herança que veio… eu não sei como que está a situação daquilo de lá, nunca procurei saber. Porque meu pai fazia parte do grupo, meu pai é um dos que comprou lá. Eles querem vender lá?

N – Uma dívida com a prefeitura.

IF – Eu não assino… não me procurem… porque eu não vou assinar… a não ser que me paguem muito dinheiro, não vou assinar e se eu não assinar não pode vender porque eu sou a única herdeira que tem… sou eu… só se me derem muito dinheiro, se não, eu não assino, a Treze de Maio, né? A Operário eu… não… não … Tem que me dar muito dinheiro, senão eu não assino porque a única que tem sou eu… daquela época, tem que deixar meu bolso cheinho de dinheiro aqui [riso] se não eu não assino.

JM – Mas ele falava em casa da sociedade?

IF – Falava.

JM – É? O que que ele falava?

IF – Ah, falava né, que às vezes ele ia lá na Treze de Maio, tinha baile lá. Lá era uma sociedade popular lá também, sabe… de mulherada… tudo né? E ele falava de lá, falava… e frequentava mais gente de cor lá, mais negro, acho que na Sociedade Treze de Maio ia mais negro naquela época; e ele era um dos fundadores dali e quem ajudou comprar aquilo dali foi ele, meu pai, e parece-me que eu ouvi dizer que querem vender aquilo lá. Eu não assino, não me procurem, só com muito dinheiro, senão, não assino não, por qualquer coisinha eu não vou assinar, vai cair lá, tá caindo eu não sei… ou andaram arrumando?

N – Tá caindo…

IF – Arrumando?

N – Tá caindo, tem que arrumar.

IF – Tá caindo?

N – Sim.

IF – Então vai cair porque eu não vou assinar [risos]. Não vou assinar mesmo. A não ser que venham molhar minha mão, né? Não, mas pode publicar isso aí, se não, a única viva sou eu [riso] de pé ainda.

JM – A senhora chegou a ir lá na Treze de Maio? A senhora chegou a ir?

IF – Não.

JM – Nunca foi? Não?

IF – Nunca cheguei a ir. Não.

JM – Na Operária ia nos bailes de aniversário?

IF – De aniversário.

JM – Mas na Treze a senhora nunca foi?

IF – Treze não, Treze de Maio não.

JM – A senhora morou em Curitiba até quando, Dona Índia?

IF – Até sempre.

JM – Veio pra cá há pouco tempo?

IF  – Há 14 anos eu moro aqui, 14 né querido? [dirige-se ao Sr. Michel] 14 anos que nós moramos aqui?

M – Aqui?

IF – É?

M – 14.

IF – 14 anos.

JM – A senhora gosta daqui?

IF – Hein?

JM – Gosta daqui? Olha que calmo, olha que silêncio, coisa boa.

IF – Hein?

JM – É gostoso aqui né? Olha que silêncio.

IF – Gosta, gosta não, né? Porque não é isso que eu queria, eu queria coisa melhor né? Mas fazer o que, gosto porque ele gosta daqui [refere-se ao esposo]. Eu gosto daqui porque é sossegado é quieto. É gosto… gosto.

JM – Uhum.

IF – Gostar, gostar não mas …

JM – Tem alguma coisa interessante que a senhora lembra da infância da juventude, alguma coisa que a senhora acha interessante e que gostaria de dizer?

IF – De o quê?

JM – Alguma coisa interessante, alguma lembrança que a senhora tem da infância ou da juventude que a senhora… que a senhora lembra assim… de maneira mais forte.

IF – Não, isso não dá pra mim falar.

JM – É?

IF – Não, não dá pra falar. Tenho umas coisas… mas isso não.

JM – Mas uma lembrança boa assim, que a senhora gostaria de falar, não tem?

IF – Ah o meu convívio familiar que era muito bom, com é que a gente diz? A gente era feliz e não sabia né? Eu era feliz e não sabia. Tem a criação da minha… de uma sobrinha que eu criei, a Sueli, eu criei a Sueli, eu criei o Goraci, eu ajudei a minha mãe a criar ele. Essas são lembranças boas.

JM – Esses são sobrinhos seus?

IF – Sobrinhos. Um é pai dele, pai não irmão, que eu criei, ajudei minha mãe a criar ele e uma menina que agora, agora já tá com 60 anos… é menina. Eu me lembro, eu gostava daquela época por causa deles.

JM – A sua mãe… a senhora se lembra da … quando seu pai faleceu? Quando que foi?

IF – A data eu não sei, eu não guardei… a data eu não sei. Eu lembro sim… lembro… foi muito difícil pra minha mãe, foi muito difícil.

JM – Sua mãe ficou viúva, ele faleceu antes né?

IF – Ele faleceu antes.

JM- Ele já era aposentado?

IF – Já era aposentado. Foi muito difícil pra minha mãe né? Porque o convívio deles era muito bom, foi muito difícil, mas ela se recuperou bastante né? Ela teve muito apoio dos filhos.

JM – Já eram adultos os filhos?

IF – Já eram adultos, já.

JM – Uhum.

IF – Eram adultos.

JM – A senhora fez pedagogia aonde Dona Índia?

IF – Na faculdade. Na Tuiuti.

JM – Na Tuiuti?

IF – É.

JM – Era bom lá?

IF – Era, né. No tempo do coronel, né… Lembra do coronel, do Coronel Sydnei? [refere-se a Sydnei Lima Santos, fundador da Faculdade (hoje universidade) Tuiuti, em Curitiba, PR].

JM – Coronel foi que fundou a …

IF – Mas ele… coronel Sydnei?

JM  – Acho que …. morreu?

P – Acho que ele se afastou só…

IF – Faleceu ele?

JM – Não… acho que não.

P – Se afastou, mas acho que não faleceu não.

IF – Aí ele… naquela época, ele era o diretor ele era o dono da escola.

JM – Ele era negro também? O coronel?

IF – Não… negro, como eu falei pra você… negro sou eu… a minha pele é uma pele negra, eu não sou preta, mas o coronel era que nem eu. Era um homem íntegro também, muito uma pessoa assim firme, depois ficou o filho dele no lugar dele. Ah, eu não me lembro o nome do filho dele… não me lembro do nome do filho dele… não me lembro mesmo.

JM – Mas quando a senhora estudava lá, era ele que estava lá?

IF – Era, era ele que administrava. Aliás, essa faculdade começou na 24 de Maio, na rua 24 de Maio lá na Água Verde. Depois… eles pagavam aluguel muito caro… ele comprou lá no Champagnat… Aí mudou a faculdade para o Champagnat. Porque não era faculdade depois que foi, [inaudível] faculdade.

JM – Isso foi quando Dona Índia?… que a senhora começou a estudar lá? Que ano que era?

IF – Ah, agora eu não sei.

JM – A senhora tinha quantos anos?

IF – Quantos anos faz que eu sou aposentada?

M – Aposentada?

IF – É?

M – Você?

IF – É? Vinte?

M – Quatro, vinte quatro.

IF – Vinte Quatro?

M – Nós estamos em 16 e se aposentou em 93.

IF – Ah não lembro, não dá pra lembrar.

M – 93 é 24.

IF – Não dá pra lembrar… muitos anos da vida.

JM – Mas foi… foi uma das primeiras turmas da Tuiuti.

IF – Foi.

JM – Foi né?

IF – Foi a primeira turma da Tuiuti. Foi… a primeira que estava lá era eu. Aliás, até trabalhei na faculdade, muitos anos, eu trabalhei dois anos lá.

JM – Mas a senhora dava aula lá?

IF – Eu trabalhava, eu trabalhava em outra… eu estudava e trabalhava.

JM – Entendi.

IF – Eu trabalhei lá também. Foi bom, era na época do coronel né?

JM – O coronel era uma pessoa querida assim, não era? Respeitada?

IF – Como?

JM – O coronel era uma pessoa bem respeitada, muito querida pelas pessoas?

IF – Era, era, era muito respeitado. Ele era uma pessoa muito respeitável, coronel Sidney. O filho dele era meio playboyzinho, mas também era bonzinho. Agora deve tá um homem já, né, tá velhão…

JM – O filho dele não foi delegado? Eu acho que eu conheci o filho dele.

IF – Conheceram ele?

P – Não.

IF – Agora o filho dele não sei, eu pensei até que ele já tivesse morrido, o coronel? Eu acho que ele já morreu, pois quantos anos meu Deus… se na época ele já era velho.

P – É… dá pra gente descobrir né?

JM – Mas não …

P – Não lembro também.

JM – É.

P – Eu soube que ele se afastou, mas não que morreu. Mas talvez ele tenha morrido… faz tempo isso né?

JM – Faz, faz uns 24 anos que ela é aposentada.

CM – Qual é o nome dele?

P – Não lembro o nome dele.

N – Sydnei.

JM – Sydnei o que?

N – Da Tuiuti.

[parte omitida, 50:42 até 51:43]

 

JM – Não teve irmão? O teu pai não teve irmão?

IF – Não, irmão não, só irmã, tia Leonídia, tia Vicentina, tinha mais uma…

N – Palmira?

IF – Palmira. Não tinha mais?

N – Tinha, Maria da Luz.

IF – Como?

N – Maria da Luz, Maria da Luz.

IF – Não tem fotografia delas? Ah… eu não sei, não conheci, não sei. Conheci, eu conheci só a tia Vicentina e tia Leonídia, essas duas eu conheci o resto não.

P – A Leonídia a senhora conheceu então? É …

IF – Ahm?

JM – A Leonídia?

P – A Leonídia foi mais próxima, então, da família?

IF – Não.

P – Não?

IF – Não, não foi… ela morava no Rio de Janeiro e a que foi mais próxima foi a tia Vicentina que morava aqui na Saldanha Marinho.

P – Ah tá.

 

[parte omitida, 52:35 até 53:05]

 

JM – A senhora gosta de lembrar essas coisas ou não é bom?

IF – Eu gosto… só que eu me lembro assim… eu sinto muito, sinto o até dentro do meu coração… de me levarem a fotografia, não pelo valor, porque eu não ligo muito pelo valor assim… eu ligo mais a paz, o quadro e onde estavam os documentos que pertenciam ao meu avô, que era do meu pai, isso eu sinto muito, sumiu, então eu gostaria que me dissessem aonde está. Porque não podem ter queimado aquilo, não tem como. A minha irmã morreu não está com ela… a mãe do [Guaraci] morreu… dele… morreu não está com ela… ou está? Com meu irmão que foi embora também não está com ele… aonde está? Aonde está? Não sei. Eram duas coisas assim que valeriam muita, não pelo dinheiro, mas valeria muito dinheiro, porque é muito importante, mas sumiu, sumiu, tiraram da parede.

JM – Ficava na parede da casa lá…?

IF – Da minha mãe.

JM – Lá da…

IF – Da Getúlio Vargas.

JM – Mas depois mudou né? A senhora disse que mudou depois?

IF – Mudou. Mas esse quadro sumiu da Getúlio Vargas.

JM – Uhm…

IF – O quadro e esse…

JM – Então quando a senhora mudou naquele outro… naquela outra casa, já não tinha mais o quadro?

IF – Já não tinha mais, nem o quadro e nem o tubo, nem o tubo não tinha mais, sumiu e era muito importante, tinha muitas documentações ali dentro importante.

JM – E a senhora não tem ideia de onde pode ter ido?

IF – [inaudível]

JM – Não tem ideia de onde pode ter ido?

IF – Não tenho ideia, não tenho ideia de onde possa estar. Eu pensei que estivesse com a minha irmã, mas não está. A família da minha irmã não tem interesse naquilo… pra que? Na mãe dele não está, poderia até estar com ela, mas não está. Então eu não sei, não tenho nem ideia da onde foi parar e ninguém ia queimar um quadro daquele… é um absurdo, não podia.

JM – Sabe que eu tenho, o meu avô tinha uma casa também, uma casa bem antiga que depois foi demolida e na parede tinha uma foto do meu avô e da minha avó, os dois sumiram e também ninguém sabe onde está, eu já revirei, já perguntei pra todo mundo da família, ninguém sabe onde tá a foto, sumiram os dois. Não eram valiosas, assim, eram quadros comuns né? Mas desapareceram também.

IF – Agora esse quadro era assim de ouro porque naquela época, esse quadro já vem de gerações e gerações, né? Imagine…

JM – Porque era do seu avô né?

IF – É.

JM – Do seu avô, que passou para o seu pai que ficou ali na parede, né?

IF – Que ficou na parede. Essa que queria pegar e não conseguiu… a tia Vicentina… ela queria pegar o quadro e não conseguiu, meu pai não deixou ela pegar, ai sumiu.

JM – Porque.. ahn… quando vocês mudaram lá pra … pra onde que a senhora falou ?

IF – Vila Fanny.

JM – Vila Fanny… já não eram todos os irmão que moravam na casa ?

IF – Na minha casa?

JM – É?

IF – Não.

JM – Alguns já tinham saído? Já tinham casado?

IF – É, casaram, né. Todos eles eram casados, ficou só eu, meu pai, minha mãe e esses dois meninos que eram o Guaraci e a Sueli, que … meus sobrinhos né?

JM – Uhum…

IF – …que foi criado pela minha mãe e por mim.

JM – Tá certo. Tem alguma coisa que vocês querem perguntar?…quer perguntar?

P – Dona Índia eu só fiquei curiosa… quando a senhora foi no baile no 28 de janeiro, lá na sociedade, só pra saber como era esse baile, se a senhora lembra… assim? Se foi várias vezes…?

IF – Lembro, nossa você não pode imaginar como é que era o baile [animada]…Ah, é o seguinte… eles faziam aqueles… aquela festa… era uma festa! Você foi, né, você lembra do baile do operário né?Lembra? Faziam aquelas mesas todas decoradas assim, sabe? Em volta do salão, era uma maravilha de tudo que você pode imaginar… Tinha o buffet, que a gente fala né. Depois do buffet que vinha o baile. Era uma maravilha!

P – E tinha uma banda… música?

IF – Banda… tinha banda! [animada] Mas não era essa banda que tem agora. Era banda, música assim… músicas daquela época assim… era muito bonita!

P –E enchia de gente, todos os bailes eram lotados? Muita gente, né?

IF – Não sei agora isso aí você me pegou não sei.

JM – Os que a senhora ia… eram…iamuita gente?

IF – Onde?

JM – Nesses bailes que a senhora ia?

IF – No 28 de janeiro?

JM – É?

IF – Era… era lotado.

JM – Muita gente?

IF –A família dos sócios, iam toda a família né. Era…

JM – Como que as pessoas iam vestidas… assim? Iam com roupas de baile… assim… como é que eram?

IF – O traje não era a rigor, mas era um traje que tinha que ir bem vestido, sabe? Se não fosse bem vestido tu não entrava.  Era bem vestido, mas não era a rigor não, entende? Bem clássico sabe, era bonito.

P – E a senhora lembra de dentro da sociedade como é que era? Se tinha quadro nas paredes? Tinha…

IF – Tinha… dentro da sociedade, eu lembro, nossa era uma maravilha, era muito linda. Que pena que não tem fotografia, muito lindo lá dentro, muito linda a sociedade e agora deve ser eu não sei…

P – Agora ela foi quase demolida praticamente. Não existe mais nada quase.

IF – Lá?! [espantada]

P – É.

IF – Ai que pena. [emoção]

P – É, pegou fogo uma época, há uns seis anos atrás, pegou fogo, não… foi quando?… 2001… isso, pegou fogo…

IF – Eu conheço você, você também me conhece.

P – [riso]

IF –Da onde eu não sei mas [ risos] deve ser de alguma reunião de escola alguma coisa. Viu ela, ela era linda por dentro. [referindo-se à Sociedade Protetora dos Operários, vendo uma foto que Pâmela lhe mostrou]

P – É…

IF – Cuidada… com as mesas bonitas, aquelas mesas de pé pesado. Nossa, era uma maravilha lá dentro. Tinha… vamos imaginar… tinha entrada que era aqui, entrada bonita, depois entrava pra cá, depois tinha assim…[indicando locais na foto].

JM – A entrada era do lado né?

IF – É.

JM – Tinha uma escada assim, né? Entrava pelo lado? Entrava num salão grande não é?

IF – Não… não tinha… pra entrar não tinha escada.

JM – Não?

IF – Não. Entrava direto da rua, entrava direto na Sociedade, depois tinha uma sala enorme que era, assim… não sei o que eles faziam ali, depois dali já saia o salão de baile, no fundo, assim, que era a orquestra, lugar pra tocar. Muito lindo lá dentro [emoção], a decoração sempre estava bem arrumada e o assoalho era de taco, sempre estava brilhando aquilo de lá, muito bonito. Que pena, que triste …

JM – A senhora lembra do quadro, que quadro que tinha na parede?

IF – Olha, os quadros que tinham na parede eram dos sócios.

JM – Dos sócios?

IF – Dos sócios reunidos que falavam daquela época, né? Inclusive meu pai tinha quadro lá, que meu pai era orador da sociedade [risos].

JM – Ele era orador da sociedade?

IF – Orador da sociedade. Que pena que tá demolida lá.

N – Tá demolido, o terreno virou um estacionamento.

IF – Que pena [emoção, pesar].

JM – [dirigindo-se a Pâmela] Você não tem aquele quadro do…

P – Tenho.

JM – Benedito? Para mostrar pra ela, pra ver se ela lembra?

P – Uhum, tenho.

IF – Benedito?

JM – Benedito Marques.

IF – É meu tio.

JM – Benedito Marques?

IF – Como?

JM – Benedito Marques? É um sócio da protetora que a gente acha que tinha um quadro na parede, que tinha um quadro dele na parede.

P – Esse aqui. A senhora não lembra se ficava lá esse quadro?

IF – Eu não conheço, não sei quem é.

JM – Não lembra de ter visto esse quadro né?

IF – Não, não sei quem é.

P – É, deixa eu ver se tem mais algum aqui. Ah tem …

JM – O seu pai foi de algum sindicato? A senhora lembra se seu pai foi de algum sindicato?

IF – Se ele pagava algum sindicato?

JM – Sim, se ele fazia parte de algum sindicato além da Operária?

IF – Fazia, aquela época eu não me lembro o nome como é que é … Fazia sim, ele pagava sindicato.

P – Esse aqui ó? A senhora lembra desse lugar?

IF – Esse lugar não lembro.

JM – É a Sociedade?

P – É que no jornal, na reportagem diz que aqui era o salão nobre, onde ficava, onde tinha as reuniões, dos sócios, dos diretores.

IF – Não isso daqui é muito antigo eu não lembro.

P – É isso aqui é foto é mais…

N – Na época em que eu fui também não era assim.

IF – Muito antiga eu não lembro.

P – Mas…

JM – Deve ter sido reformado né?

P – É.

IF – Eu não lembro.

P – E na Treze de Maio não tinha uma festa como essa, da Operária?

IF – Tem festa lá né? Que vocês vão né?[dirige-se ao Nei] Que o Guaraci vai, a minha sobrinha vai né? Mas eu não…

N – Treze de Maio.

P – Mas não tinha assim como tinha na Protetora?

IF – Não, não sei como que era a festa lá o aniversário da Treze de Maio.

N – Nunca foi?

IF – Você nunca foi? [dirigindo-se ao Nei]

N– Não. Você nunca foi?

IF – Nunca fui.

P – É só tem essas daqui.

JM – Ó Dona Índia e a senhora… assim… você disse que seu pai falava bastante sobre o seu avô na família né? Só na família?

IF – Falava.

JM – E a senhora também falava sobre seu avô na família? Contava essa história dele?

IF – Não.

JM – Não?

IF – Não, não. [observando a letra com que Pâmela faz anotações] Tua letra é muito pequena você não deve escrever assim. [risos]

P – É muito pequeninha né?

IF – É. Você vai ser professora?

P – Vou. Pequena né? Já reclamaram. [risos]

IF – Não. Tá errado. Desculpe mas está. Como é que um aluno seu vai ler?

P – É, não, mas eu faço maior eu tento fazer maior, mas aqui é, quando eu escrevo muito rápido ela é pequena mesmo. [riso]

IF – Ah não…

P – E ruim pra ler né?

IF – Dá pra ler, mas muito pequena [risos]… não… mas pra você mesma numa hora de emergência, você não vai conseguir só com um óculos.

P – É com óculos, sem óculos eu não leio.

IF – Não lê né?

P – Não, não. [risos]

IF – Solta a mão que você vai.

JM – Quando você dava aula, você tinha algum momento que você falava ou estudava ou ensinava para os seus alunos sobre escravidão?

IF – Falava, falava. No dia 13 de Maio eu fazia, eu conversava bastante com eles, a gente cantava na libertação dos escravos, mostrava pra eles a fotografia de alguns negros importantes como Castro Alves, então eu mostrava assim, mostrava.

JM – E do seu avô, você falava?

IF – Hein?

JM – Do seu avô você falava pra eles?

IF – Não, não falava.

JM- Não falava?

IF – Não, não da minha família não falava não, mas falar dos escravos, dos negros assim, eu falava sim e nunca escondi que meu avô era preto, que meu pai era preto… não, sempre disse, era preto, era preto, meu pai não era mulato, meu pai era preto [acentua a palavra], negro preto, só é mas é que era um homem valorizado né? Um homem que esses vagabundo aí não são, que, que eu quero mais né? E para o meu filho eu ensinei bastante, que tinha que valorizar muito a família dele porque era [ não]…

JM – Pra ele a senhora falava do seu avô?

IF – Falava. Para o meu filho falava sim, contava toda a história, ele sabia tudo. Só que ele não se aprofundava, porque ele era muito sentimental, entende? Então às vezes ele não via assim… para mim parar, porque ele era muito sentimental, mas eu falava contava, como é que era como é que não era, contava sim.

P – E sua mãe nasceu em Curitiba?

IF – Hein?

P – Sua mãe nasceu em Curitiba?

IF – Nasceu. Agora, minha mãe já… a história da minha mãe já é uma história mais simples né, não tem, não tem, assim … Tem o Benedito lá? O Benedito lá? O irmão que mandou fazer a rua no nome dele? É história da minha mãe, isso ai já é outra história.

P – Uhum.

IF – Onde que vai ser a rua?

N – Não sei, não sei, mas tem uma rua com nome de Benedito não sei o que.

IF – Vai ser lá no centro de Curitiba ou no bairro? Vieram me pergunta e eu não quero no bairro eu quero no centro, senão eu não autorizo também, porque eu preciso autorizar muita coisa [riso] como é que é, eu não sou boba [risos].

N – Tem que, a Jaqueline [pessoa da família] deve saber qual que é.

IF – Se deve ser maios ou menos no centro?

N – É a Jaqueline deve saber.

P – Benedito, é o pai da…?

IF – Essa é a história da minha mãe, esse é tio da minha mãe que era professor de faculdade.

N – Já tem a rua com o nome dele, só que eu não lembro qual bairro que é.

IF – Já tem uma rua?

N – Já, já, já tem.

IF – Essa é a história da minha mãe, não lembro muito da minha mãe. A minha mãe falava pouco, ela não falava nela, não contava muito a história da vida dela, não… minha mãe, ela era meio quieta. Agora do meu pai não, meu pai era.. se encontrava uma foto encontrava mais coisa aí. Agora no Rio de Janeiro eu acho que já morreu tudo,  não sei se já morreram todos já, da família do meu pai.

 

[parte omitida, 1:08:01 até 1:13:21]

 

IF – Pois é, o que mais que vocês querem? Podem perguntar.

P – Eu acho que era só isso, da minha parte.

IF – E eu tô aqui, sou casada com um francês, ele é francês legítimo, veio da França. [risos]

JM – Quanto tempo vocês estão casados?

IF – Quantos anos?

JM – É?

IF – 37, 38, né?

P –Se conheceram lá em Curitiba?

IF – Lá em Curitiba. 37 anos. 37 ou 38 alguma coisa assim, eu até já esqueci. [risos]

JM – Dona Índia a gente, assim, a gente, essa primeira conversa com a senhora… assim… já foi bem legal, né, pra… pra gente saber um monte de coisa, que pra gente e é bastante interessante. Será que a gente pode voltar qualquer dia?

IF – Pode, pode a hora que vocês quiserem.

JM – Sabe por quê? É porque depois da conversa a gente vai lembrando coisa, que queria perguntar, mas que na hora não deu.

IF – Pode voltar a hora que quiser. Só telefona antes porque eu não paro em casa né? [risos] é difícil ficar por aqui.

JM – Tá. E a senhora, uma hora a gente pensa um dia em fazer um pequeno documentário assim, com imagens contando a história da família de vocês, será que algum dia a gente poderia fazer uns registros em vídeo da senhora, com uma câmera?

IF – Pode.

JM – Pode? Aí a gente avisa antes, pode ser?

IF – Pode.

JM – Às vezes até a gente pede pra senhora repetir alguma coisa que a senhora falou hoje assim, como…

IF – A não sei o que falei…

JM – Não mas a gente tem…Por exemplo, tudo isso que a senhora falou sobre o baile, como era o baile, é bem legal.

IF – A o baile era uma maravilha, lá no Operário, era uma maravilha.

JM – Então…

IF – Tem que pôr bem claro, né 28 de Janeiro, porque as pessoas podem pensar “nossa ela frequentava o Operário”.. aí vão pensar o que né? [risos]

JM – Não, não… Isso! É!

IF – 28 de Janeiro baile social. [risos]

JM – Mas aí a gente pode então trazer…

IF – Pode.

JM – É que é um pouco assim tem uma luz, tem a câmera, não tem importância? A senhora tem…

 

[parte omitida, em que Dona Índia lamenta não ter fotografias da família, 1:15:29 até 1:18:56]

 

JM- Oh Dona Índia a gente vai fazer um álbum de fotografias com tudo isso que a gente encontrou aí e trazer pra senhora.

IF – Pode trazer eu aceito

JM – Aquela da Treze, aquela lá tem …

M – Até quanto essa foto? [perguntando sobre a foto da mãe de Dona Índia]

N – Como?

M – Quantos anos?

IF –Ah eu não sei, como minha mãe era novinha. [emoção]

M – Eu vou chutar 60?

N – Eu acho que é 40, na década que ela nasceu, ela devia ser bem menininha.

M – Não, não, eu tô 37 com ela, não é mais que 40.

N – Não, década de 40. Ah sim ela deveria ter uns 30 anos.

IF – Mamãe?

N – É.

IF – Não 30 anos, aí não.

N – Menos?

IF – Era mais nova

M – Ah ela tem idade aí nessa foto.

IF – Tá sorrindo, ó!

M – Ahn?

IF – Ela tá sorrindo?

N – Tá feliz… é uma festa bonita. Acho que era o casamento dele.

IF – Ahn?

N – Acho que era o casamento dele.

IF – O casamento do Vicente?

N – Uhum.

IF – Tenho saudade da minha mãe… dele também… era uma pessoa boa, só que ele era muito pegador. Ele era terrível. [risos]

M – Não deixa na gaveta que estraga.

IF – Que gaveta?

M – Deixar na gaveta, fechar não pode. Deixar pegar ar.

IF – Mas é dele essa foto.

M – Estraga, fechado estraga.

M – [inaudível]

N – Essa aqui tia, essa aqui é a filha da Lucélia que mora na Hungria.

IF – Lucélia, daquela que morreu?

N – Lucélia, daquela que morreu.

IF – A cara da Ligia né? Esse aqui é avô desse, não?

N – Não, ela é do Moacir.

IF – Olha que negra bonita. Ela é negra também.

N – Ela é e não falava português.

IF – É? Ela não fala português?

N – Fala, mas fala bem arrastado.

M – Quem é essa?

N – [Elin]… ela mora na Hungria. Ela foi levada embora com dois anos.

IF – Por quê?

N – O pai raptou ela.

IF – Hein?

N – O pai sequestrou ela.

IF- Quem sequestrou?

N – O pai.  O pai levou e não trouxe mais.

IF – A então essa é a história, meu Deus.

N – História triste também.

IF – E a mãe dela?

N – A mãe dela faleceu ano passado.

IF – Sequestrou ela e levou ela embora?

N – A menina sim, com dois anos.

IF – Por que separaram?

N – Se separaram.

IF – Credo. Mas se você não me der uma dessa [foto]…

N- Eu vou te dar tia, eu vou te trazer uma bem legal dessa aqui, tá bom? E o álbum tá lá na casa do Rui.

 

[parte omitida, 1:22:15 – 1:22:46]

 

M – Vai aparecer aí.

IF – As fotografias tão aparecendo né?

N – Tão aparecendo as fotografias. [risos]

JM – O que, que seria essa daí?

N – Essa daí? Essa daí foi num livro feito que tem o Vicente aqui ó? Tá até no livro já.

IF – Ó, Mi, meu vô. Eu falo nele, cê pensa assim que é mentira dela [riso] não é meu vô [risos]… ó, meu vô.

M – O pai? Ah…

IF – O pai do meu pai. Esse aqui é o pai do meu pai.

M – O pai do Nei também é Vicente?

N – Sim, meu pai também é Vicente.

IF – O Vicente meu irmão?

M – Vicente.

N – Vicente.

IF – Vicente Moreira de Freitas, o pai dele é… era né morreu. Assim que tiraram a fotografia de lá.

P – Isso.

IF – Esse daqui foi meu vô. Mas já estava separada essa fotografia. Mas não era essa fotografia que estava lá no túmulo não.

N – Essa, tia, que está lá. Aqui é o túmulo.

IF – Quanto tempo faz que você tirou essa fotografia aqui?

N – Uns quatro anos, né? Essa daí foi tirada há uns quatro anos, essa foto.

IF – Porque foi aberto lá, mas eu não sabia que tinha sido aberto.

N – Foi aberto não sei quem abriu e deixou assim. Não sei quem abriu.

IF – Tinha que ver essa história.

M – Esse aqui é seu avô?

IF – Meu avô

M – Tá lá?

IF – É.

M – Tá lá? Faz muito tempo que tirou essa foto.

N – Como?

M – Muito tempo que tirou essa foto?

N – Sim faz muito tempo que tá ali desse jeito.

M – Porque hoje já tem placa nova que…

IF – 1988 Meu Deus! [ênfase]. Mas como é que foi parar na casa do Rui esse meu álbum?

N – Essa foto? Não sei, tem que ver lá com ele. Acho que ele não levou seu álbum, mas… Não sei.

IF – É um álbum sim, todas essas fotografias que está por aí. Meu vô… Eu gostava de conhecer ele, mas não conheci.

M – Nei, tu não… do tubo, do tubo?

N – Do tubo também não. O tubo eu nunca vi.

IF – Vai aparecer o tubo, procure saber.

N – Eu já conversei com alguém que pode buscar isso um…

M – A história do tubo é complicada.

N – É eu já conversei com alguém que pode buscar isso, mas até agora nada.

M – Ah, é? É complicada a história do tubo.

IF – Nei Braga?

N – É esse livro ela fez com todos os personagens da… do Municipal né? Com todos os… e aí ela incluiu o Vicente também nessa história.

IF – É bonito né?

N – Bem bonito esse livro.

JM – Então a gente pode voltar outro dia Dona Índia?

IF – Hein?

JM – A gente pode voltar outro dia?

IF – Pode, pode voltar, a hora que vocês quiserem, fique à vontade.

JM – Então tá bom.

IF – Quem vem aqui na minha casinha gosta de voltar sempre [risos]

JM – É? Tá bom. [risos] Vamo andar então?

N – Vamo então.

JM – Obrigada viu?

IF – Hum?

JM – Obrigada pela tua atenção.

IF – Tá bom então. Tem coisa que a gente lembra né? E é bom lembrar muitas coisas né? Dos meus pais, eu gostava muito deles né? Convivia muito bem, eu tinha um a família muito, muito… assim… unida  né. Minha família, graças a Deus, família assim muito boa. Não é por ser minha família não, tanto é que…. agora desligue…

[Finalização da gravação]

Após desligarmos o gravador, Dona Índia mostrou algumas fotos e objetos que estavam em cima de móveis na sala, dizendo que eles se associam a lembranças das quais não queria falar.

Dona Índia faleceu poucos meses após essa entrevista, sem que pudéssemos retornar a nos encontrar. Sr. Michel, seu esposo, havia falecido poucos dias antes do falecimento dela.