Nascido em Curitiba, no dia 20 de agosto de 1902, Castalgino era filho de Auto Felisberto dos Santos e Tiburcia Carneiro dos Santos. Conhecido como Zito, teve um papel destacado no associativismo futebolístico, sendo o jogador de maior destaque da primeira geração de atletas negros de Curitiba, responsáveis por romper as barreiras raciais para a inserção de negros em um espaço até então dominado por homens brancos e financeiramente abastados.

Seus pais contraíram matrimônio em abril de 1897 e viviam em uma pequena casa de madeira na rua Amintas de Barros, número 220, na região central da capital paranaense. Um edital de citação de 1981, no qual Akram Abdallah Kansou reivindica a posse animus domini do imóvel supracitado – que havia adquirido dos herdeiros da família Santos – indica que o casal detinha a propriedade “desde meados de 1800”, sem, contudo, registrá-lo no Registro de Imóveis, cadastrando-a, apenas, junto ao município de Curitiba, provavelmente para fins de recenseamento. Como se vê, os Santos não escaparam de um problema recorrente na experiência de diversas famílias negras no pós-abolição, no campo e na cidade, a questão da regularização fundiária.

Auto e Tiburcia eram católicos e, em seus ritos fúnebres, tiveram suas missas de sétimo dia celebradas, respectivamente, na Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Chagas, no Largo da Ordem, e no altar-mor da Capela do Instituto Santa Maria – hoje Colégio Marista –, localizado, à época, na Rua XV de Novembro, ao lado do Teatro Guaíra, há duas quadras da residência da família Santos. Não sabemos a profissão exercida por ambos, conhecemos, apenas, o histórico de conflitos de Auto com a polícia. Retratado na imprensa como “um mau vizinho”, “um preto barbudo” que “quando fica um tanto ‘encharcado’ incomoda os vizinhos, tentando agredi-los”, Auto foi detido mais que uma vez na rua onde morava, acusado de incomodar o sossego público.

Foi nessa família, ao lado de, ao menos, outros seis irmãos – Athayde, Daló, Valdomiro, Aurora, Valdelina e Ibrahim – que Castalgino cresceu, sendo, provavelmente, o filho mais velho. Aos 10 anos, em 1912, seus pais o matricularam na terceira turma da Escola de Aprendizes e Artífices do Paraná, instituição inaugurada em 1910, durante a breve presidência de Nilo Peçanha, no interior de um movimento de estabelecimento de escolas primárias de caráter técnico e profissionalizante nas capitais dos estados da Federação, voltadas aos filhos do crescente proletariado urbano nacional. Por essa instituição, à época situada em um palacete na Praça Carlos Gomes, passaram outras crianças que depois se destacariam como alguns dos primeiros futebolistas negros da cidade, como Moacyr Gonçalves e, provavelmente, Athayde Santos, irmão de Castalgino.

No curso de serralheria da Escola de Aprendizes e Artífices, Castalgino ganhou o apelido de Zito e aprendeu o ofício de carpinteiro, que exerceria durante toda a vida, inclusive durante os períodos em que atuou como atleta amador de futebol. O campo “profissão” em sua Certidão de Óbito não deixa dúvida a esse respeito: “carpinteiro aposentado”. Sua família era de trabalhadores e artífices. Seu irmão Athayde, além de futebolista e árbitro, era também um conceituado alfaiate na cidade. Seu cunhado Julio Havrenne, casado com sua irmã Valdelina dos Santos, foi um importante líder operário no início dos anos 1930, chegando a exercer a presidência da União Operária do Paraná e a vice-presidência da Federação Operária do Paraná.

Zito dava seus primeiros passos no futebol, em 1916, quando chegaram a Curitiba as notícias de que um novo regulamento estava sendo debatido pelos dirigentes da Liga Metropolitana de Sports Athléticos, do Rio de Janeiro, e da Federação Brasileira de Sports, à qual a Liga Sportiva Paranaense era filiada. Tal regulamento visava excluir da prática do futebol todos os atletas “que tiram seus meios de subsistência de qualquer profissão braçal”, indivíduos “cuja profissão lhes permita receber gorjeta” e “que exercerem qualquer posição, profissão ou emprego que, a juízo do Conselho Superior, esteja abaixo do nível moral e social exigido pelo sport do amadorismo”. O projeto, batizado de “Nova Lei do Amadorismo”, previa que os atletas que exercessem profissões braçais – esse era o caso do carpinteiro Zito – não poderiam ser reconhecidos como amadores, o que, num período em que a prática amadora – ou seja, não remunerada – era requisito obrigatório para a inscrição em clubes e ligas esportivas, terminava por impossibilitar a participação de artífices e operários nas competições de futebol.

O projeto foi duramente criticado por alguns dirigentes esportivos curitibanos, como Luiz Guimarães, que apelidou o regulamento de “Lei da Seleção” e que denunciou ele, além de se orientar por parâmetros classistas, adotava critérios raciais para restringir a participação de pessoas negras das atividades futebolísticas. A Associação Paranaense de Sports Athléticos, em ato simbólico contra a nova Lei do Amadorismo, chegou a organizar um festival em homenagem à abolição da escravidão, no dia 13 de maio. Mas a melhor resposta contra a “Lei da Seleção” – que terminou não sendo aprovada graças às reações em contrário que partiram de diversos locais do Brasil – veio ao final do ano de 1916, quando o Britânia Sport Club, um clube formado por operários, muitos deles negros, se sagrou campeão da Liga Sportiva Paranaense. Era o primeiro de uma série de oito campeonatos paranaenses faturados pelo Britânia, sendo seis deles consecutivos (1916, 1918, 1919, 1920, 1921, 1922, 1923 e 1928), feito até hoje inédito no futebol paranaense. Um dos principais astros do hexacampeão paranaense era o meio-campista Zito, o “Tank”, como era conhecido nos gramados, em razão da potência do seu chute e de sua força muscular, que faziam lembrar a capacidade de combate do veículo de guerra.

Zito ingressou no Britânia em 1919, aos 17 anos, quando o clube já havia faturado dois campeonatos e o debate sobre a aceitação ou não de negros e operários nas ligas futebolísticas já tinha sido, ao menos em parte, superado. A apropriação do futebol pelas camadas populares era um fenômeno irreversível e o próprio Britânia evidenciava isso. Fundado por tipógrafos, vidraceiros e ferroviários do bairro Rebouças, região de forte presença operária e negra em Curitiba, o Britânia ficou conhecido por contar com diversos atletas negros em sua equipe, o que fez com que ele fosse considerado nas décadas de 1910 e 1920 como “o clube dos pretos” de Curitiba, posto perdido nas décadas seguintes para o Clube Atlético Ferroviário, agremiação surgida de uma cisão interna no Britânia. Em uma liga de futebol em que predominavam as elites brancas, o Britânia era uma exceção que havia subido à primeira divisão do campeonato em uma brecha aberta por um conflito interno aos grupos dirigentes da liga paranaense. Com Floriano Carvalho e Augusto Moura, Zito formou uma trinca de atletas negros que protagonizaram praticamente todas as conquistas do Tigre, apelido do Britânia naqueles anos.

Em 1920, Zito foi o melhor artilheiro do campeonato, com 19 gols feitos, a maior quantidade de tentos faturados por um atleta, até então, no campeonato paranaense. Por seu destaque nos gramados, foi convocado inúmeras vezes para servir à seleção paranaense de futebol. Disputou diversas partidas contra a seleção paulista pela Taça Affonso Camargo, quando se defrontou com Arthur Freidenreich, primeiro ídolo negro da seleção brasileira, e representou o Paraná no torneio de seleções estaduais realizado em 1922, em homenagem ao centenário da independência, o precursor do Campeonato Brasileiro de Seleções Estaduais (1923-1946). Ao lado de Arturzinho, do Coritiba, e Floriano, também do Britânia, Zito fez parte da primeira geração de atletas negros da seleção de futebol paranaense, sendo o mais destacado deles. Uma ironia, para um estado que queria se projetar, no plano nacional, como território eminentemente branco.

Exímio chutador, cabeceador, com “bom porte físico, muita valentia e boa postura na posição”, como definiu Francisco Genaro Cardoso, principal cronista esportivo paranaense do século XX, Zito foi o primeiro de uma família de destacados atletas e, não seria exagero afirmar, o primeiro artilheiro e ídolo negro do futebol paranaense. Pelas trilhas que Castalgino dos Santos abriu, não passaram apenas seus irmãos mais novos Athayde Santos e Daló dos Santos, mas gerações e gerações de atletas que fizeram do futebol um espaço de projeção social, ascensão econômica, realização estética e , por que não, de conquista da cidadania.

Jogou até 1932, sempre no Britânia, e depois pendurou as chuteiras, dedicando-se exclusivamente à carpintaria e participando, vez ou outra, de jogos comemorativos com veteranos do clube. Faleceu em 21 de novembro de 1978, em decorrência de um acidente vascular cerebral, na mesma residência em que nasceu, na rua Amintas de Barros, nº 220. Deixou uma filha, em sua Certidão de Óbito nomeada apenas como “Marli”. Está sepultado no Cemitério São Francisco de Paula, no lote 5 da quadra 112, pertencente à sua família, onde também jazem seus pais, seu irmão e também atleta Athayde Santos, seu cunhado e líder operário Julio Havrenne, além de outros familiares.

O associativismo esportivo foi um importante espaço de organização de sujeitos negros no pós-abolição, que tiveram participação decisiva na popularização de modalidades esportivas, como o futebol, cuja prática inicialmente estava restrita às elites brancas. Menos estudadas que as agremiações mutualistas, carnavalescas ou que a imprensa negra, as associações esportivas proporcionavam um espaço raro de projeção social no mundo urbano da Primeira República e significaram uma possibilidade concreta de ascensão econômica para diversos indivíduos negros. Dado o alcance massivo e a dispersão geográfica que o futebol atingiu nas primeiras décadas do século XX, essa modalidade associativa envolveu um número enorme de pessoas, extrapolando em muito os limites das frações mais organizadas e intelectualizadas da comunidade negra. Os clubes esportivos se converteram em ambientes de aprendizado, onde os atletas entravam em contato com noções básicas de educação física, cuidados com a saúde e tinham aulas de primeiras letras – uma vez que analfabetos eram impedidos de se inscrever nas ligas. Com estatutos confeccionados segundo a cultura organizacional de matriz liberal e republicana, as agremiações também eram espaços de vivência dos ritos da democracia. Por meio delas, sujeitos por vezes excluídos da cidadania formal entravam em contato com todo um léxico e repertório democrático, com suas assembleias gerais, atas, votos, debates, mesas diretoras, comissões fiscais etc.

Espaços de poder e prestígio, os clubes esportivos também se tornaram agentes intermediários no contato entre essas populações e a grande imprensa, o poder público e as associações das classes mais abastadas, que invariavelmente estabeleciam alianças com os clubes de base popular, a fim de conseguirem votos e apoio nas reuniões das federações esportivas. Os clubes eram, ainda, um instrumento decisivo para a organização de festejos, bailes, encontros, excursões, enfim, uma série de atividades geradoras de laços de solidariedade e identidade, que transformavam o tempo livre em alguma coisa efetivamente prazerosa, que não se resumisse ao tempo de preparação para o trabalho. Enfim, são muitos os possíveis significados do associativismo esportivo. Todos eles, de certo modo, se entrelaçam na trajetória de Castalgino dos Santos, o Zito, primeiro ídolo negro do futebol paranaense e figura de destaque no Britania S. C., o clube futebolístico formado por trabalhadores curitibanos de maior destaque nas décadas de 1910 e 1920, que mantinha uma relação de enorme proximidade com a comunidade negra citadina.

Equipe do Britânia campeão do Campeonato Paranaense de 1922. Zito é o segundo, agachado, da esquerda para a direita. Fonte: O Dia, Curitiba, 17 dez 1927, p 3.

Parte da equipe do Britânia com Zito ao fundo, em pé, o primeiro da direita para a esquerda. Fonte: CARDOSO, Francisco G. História do Futebol Paranaense. Curitiba: Grafipar, 1978, p. 437.

Verbete elaborado por: Jhonatan Uewerton Souza – Instituto Federal do Paraná – Campus Goioerê – março 2020

REFERÊNCIAS

Bibliografia

CARDOSO, Francisco G. História do Futebol Paranaense. Curitiba: Grafipar, 1978.

GUIMARÃES, Luiz. Selecção Sportiva. Commercio do Paraná. Curitiba, 29 out 1916, p. 2.

MACHADO, Heriberto I. CHRESTENZEN, Levi M. Futebol Paraná História. Curitiba: Digitus, 1990.

NETO, Carneiro. O voo certo: a história do Paraná Clube. Curitiba: S/Ed, 1996.

SOUZA, Jhonatan U. O jogo das tensões: clubes de imigrantes italianos no processo de popularização do futebol em Curitiba (1914-1933). Dissertação em História – UFPR. Curitiba, 2014.

TOURINHO, Luiz Carlos Pereira. Toiro Passante V – Tempo de República Democrática. Curitiba: Estante Paranista, 1994.

VEIGA, Cynthia. História da Educação. São Paulo: Ática, 2007.

Fontes

Agradecimentos e Missa. O Dia. Curitiba, 6 de agosto de 1949, p. 5.

Casamento Civil. A República. Curitiba, 20 de abril de 1897, p. 1.

Certidão de Óbito.– Registros Civis: Curitiba, 1884-1996. 3º Ofício. L.15-22 1976-1979 .Disponível em: < https://www.familysearch.org/ >. Acesso 05/01/2020.

Edital de Citação. Diário da Tarde. Curitiba, 20 de junho de 1981, p. 4.

Escola de Artífices. A República. 22 nov 1913, p. 1.

Missa. Diário da Tarde. Curitiba, 2 jun 1941, p. 4.

Salve Britânia S. C. A Tarde. Curitiba. 20 nov 1951, p. 4.

Secção esportiva. Diário da Tarde. Curitiba, 03 mai 1916, p. 2.

Um Mau Vizinho. Diário da Tarde. Curitiba, 17 abr 1929, p. 8.