Curitibano de nascimento, Athayde Santos veio ao mundo em 2 de fevereiro de 1904, Nasceu Athayde e morreu Ataíde – a mudança na grafia do nome data do início da década de 1930. Juntamente com Moacyr Gonçalves, teve um papel destacado no associativismo futebolístico, sendo um jogador de destaque na segunda geração de atletas negros de Curitiba, responsáveis por romper as barreiras raciais para a inserção de negros em um espaço, até então dominados por homens brancos e financeiramente abastados.
Seus pais, Auto e Tiburcia, contraíram matrimônio em abril de 1897 e viviam em uma pequena casa de madeira na rua Amintas de Barros, número 220, na região central da capital paranaense. Um Edital de Citação de 1981, no qual Akram Abdallah Kansou reivindica a posse animus domini do imóvel supracitado – que havia adquirido do próprio Athayde e de sua irmã Aurora, herdeiros da família Santos – indica que o casal tinha a propriedade desde meados do século XIX, sem, contudo, registrá-lo no Registro de Imóveis, cadastrando-a, apenas, junto ao município de Curitiba, provavelmente para fins de recenciamento. Como se vê, os Santos não escaparam de um problema recorrente na experiência de diversas famílias negras no pós-abolição, no campo e na cidade, a questão da regularização fundiária.
Auto e Tiburcia eram católicos e, em seus ritos fúnebres, tiveram suas missas de sétimo dia celebradas, respectivamente, na Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Chagas, no Largo da Ordem, e no altar-mor da Capela do Instituto Santa Maria – hoje Colégio Marista –, localizado, à época, na Rua XV de Novembro, ao lado do Teatro Guaíra, a duas quadras da residência da família Santos. Não sabemos a profissão exercida por eles, mas notícias em periódicos permitem saber que Auto teve problemas com a polícia. Retratado na imprensa como “um mau vizinho”, “um preto barbudo” que “quando fica um tanto “encharcado” incomoda os vizinhos, tentando agredi-los”, Auto foi detido mais que uma vez na rua onde morava, acusado de incomodar o sossego público.
Foi nessa casa da rua Amintas de Barros, ao lado de, pelo menos, outros seis irmãos – Castalgino (Zito), Daló, Valdomiro, Aurora, Valdelina e Ibrahim – que Athayde se criou, em uma família de operários e artífices. Seu irmão Castalgino era carpinteiro e seu cunhado Julio Havrenne, casado com Valdelina dos Santos, foi um importante líder operário no início dos anos 1930, chegando a exercer a presidência da União Operária do Paraná e a vice-presidência da Federação Operária do Paraná. É provável que Athayde tenha aprendido o ofício de alfaiate na Escola de Aprendizes e Artífices do Paraná, atividade que exerceria na vida adulta, possivelmente como contratado de alguma casa do ramo e não como proprietário de alfaiataria, uma vez que o alistamento eleitoral de 1928 o definia como “operário, residente à rua Lourenço Pinto.” Na casa da rua que cruza com a estação ferroviária da Rede Viação Paraná-Santa Catarina, Athayde abrigou sua família, formada pela esposa Maria Emilia Santos e por, ao menos, dois filhos, Renato Santos e Laurita Santos.
A experiência associativa de Athayde se constituiu no âmbito das atividades futebolísticas, um espaço que no início do século XX era ocupado primordialmente por homens brancos e abastados. Seu local de moradia, nas cercanias da estação ferroviária, região marcadamente operária no início do século XX e com significativa população negra, próximo ao campo do Britânia, indica que o Athayde poderia ter seguido os mesmos caminhos do irmão, ídolo do Britânia, se assim quisesse. Mas, como que para colocar à prova toda a tentação de determinismo geográfico ou genealógico, Athayde começou a competir por um modesto clube varzeano, o Tiradentes F. C., originalmente formado pelos inferiores e praças da força militar, que em 1920 conquistou a Liga Sportiva Municipal, popularmente conhecida como “Suburbana”. Posteriormente, jogaria ainda pelo Paranaense, mais um clube varzeano, onde conheceu outro atleta negro de atuação destacada nos anos 1920, Moacyr Gonçalves.
A dupla Athayde Santos e Moacyr Gonçalves foi a mais representativa da segunda geração de atletas negros do futebol paranaense, que chegou ao auge da carreira nas décadas de 1920 e 1930, sucedendo a primeira, representada por futebolistas como Zito, Moura e Floriano, que atuaram com maior destaque na década de 1910 e na primeira metade dos anos 1920. Os desafios agora eram outros, não se tratava mais de garantir a possibilidade de acesso dos negros às ligas futebolísticas, essa luta já havia sido travada pela geração anterior. O tempo agora era de assegurar tratamento equânime em relação aos jogadores brancos, alguma remuneração em troca dos serviços prestados, assistência médica em caso de lesões, liberdade para trocar de clube – “liberdade de passe”, no jargão futebolístico – e galgar novos espaços de poder no campo esportivo, como os de capitão, técnico, árbitro, cronista esportivo e, no limite, dirigente de clubes e federações.
Por suas boas atuações nas ligas suburbanas, Athayde Santos e Moacyr Gonçalves foram convidados, em 1923, a jogar pelo Palestra Itália F. C., poderosa equipe que disputava a primeira divisão do campeonato paranaense. Formaram, ao lado de Dario Pereira, a trinca de “morenos do Palestra”, como eram tratados na imprensa os jogadores negros que atuavam para o clube dos italianos. O ingresso desses atletas no Palestra Itália é um marco da inserção de futebolistas negros nos principais clubes paranaenses. Na década de 1910, os atletas negros normalmente estavam vinculados a agremiações de origem operária, como o Britânia. O ingresso de Athayde, Moacyr e Dario no Palestra Itália marcou o início de uma tendência que se prolongaria por toda a década de 1920, a de abertura paulatina dos clubes aos jogadores negros. Mesmo os mais aristocráticos, como o Athlético Paranaense, não resistiriam a esse processo, contratando atletas negros como Urbino, integrante da equipe atleticana campeã paranaense em 1925.
Pelo Palestra Itália, Athayde faturou o campeonato de 1924, rompendo uma sequência de seis títulos do Britânia S. C., além dos paranaenses de 1926 e 1932. Apelidado de “Chique-chique”, o ora meio-campista, ora lateral esquerdo, Athayde Santos foi um dos mais importantes jogadores dessas campanhas, sendo conhecido por seu drible, que os cronistas esportivos comparavam com “uma dança indígena, muito semelhante a do Charleston”.
Foi convocado por diversas vezes para atuar na seleção paranaense de futebol, em amistosos e no Campeonato Brasileiro de Seleções Estaduais. Um fato ocorrido com Athayde, no ano de 1926, durante uma excursão da seleção paranaense ao Rio de Janeiro, indica que não obstante a inserção de atletas negros nos clubes e na própria seleção, o racismo ainda permeava esses espaços, expondo indivíduos negros a situações vexatórias. Segundo a descrição do cronista esportivo da Gazeta do Povo, na derrota dos paranaenses por 3 a 1 contra o Vasco da Gama, ao final da partida, Athayde saiu de campo irritado e teve que ser contido por jornalistas. O motivo? Ninho, capitão da seleção paranaense, teria se referido a ele como “nego burro” depois de um erro do meio-campista. A equipe técnica fez questão de por panos quentes no assunto e obrigou que ambos os atletas posassem para fotos abraçados, em frente aos profissionais da imprensa.
Esse não era um caso isolado. Em maio de 1930, por exemplo, o jornalista esportivo de O Dia, Parahylio Borba, ex-zagueiro do Britannia e do Athlético Paranaense, trocou insultos com um cronista não nomeado de “um matutino da capital”, que havia reprovado sua atuação enquanto jogador, chamando-o de “zagueiro medíocre”. Depois das críticas, Borba passou a se referir a esse cronista, sempre em tom jocoso, como “descendente de algum nobre das costas da África”. Em 29 de maio, o cronista de O Dia foi ainda mais explicitamente racista em seus insultos ao cronista do jornal concorrente: “Serviço de negro, meus caros. Um branco não seria tão imundo e covarde assim. Deixem-no com a marca que traz no corpo e n’alma.” Lidos a contrapelo, entretanto, os insultos racistas direcionados ao cronista de “um matutino da capital” indicam que sujeitos negros estavam ocupando outros postos no interior do campo esportivo, antes reservados a indivíduos brancos, como os de jornalista e de cronista esportivo. E, como é possível notar, isso incomodava aqueles que antigamente monopolizavam os instrumentos e espaços da crítica esportiva.
Por volta de 1937, Athayde Santos se aposentou das atividades como jogador de futebol e iniciou uma longa carreira como árbitro, abrindo mais um flanco para a inserção social de sujeitos negros no campo esportivo paranaense. Entre 1928 e 1962, o “Compadre”, apelido de Athayde em seus tempos de juiz, apitou 296 jogos oficiais da Federação Paranaense de Futebol, o que fez dele, até fins da década de 1970, o árbitro recordista em número de partidas no Paraná.
Considerado o melhor juiz paranaense nas décadas de 1940 e 1950, chegou a ser eleito em um concurso popular, em 1955, como o melhor árbitro do Paraná. O reconhecimento público, entretanto, não o tornou imune a toda sorte de violências. São constantes as notícias de agressões e insultos de torcedores, dirigentes e atletas contra Athayde, durante as partidas. No episódio mais famoso, que se estendeu entre os anos 1947 e 1948, o Athlético Paranaense impediu que Athayde Santos fosse escalado como árbitro de seus jogos, alegando que só aceitaria ter uma partida apitada pelo “Compadre”, caso ele apresentasse um laudo de sanidade mental expedido pelo prestigiado neurologista e professor da Universidade Federal do Paraná, Octávio da Silveira. Indignado com as humilhações sofridas, Athayde Santos processou o clube rubro-negro, tendo como seu advogado o deputado da ala reformista/nacionalista do PTB Waldemar Daros e chegou a tentar articular uma greve, junto com outros árbitros, em 1948, exigindo respeito e melhores condições de trabalho.
De vida quase secular, faleceu aos 91 anos, em 21 de setembro de 1995, de causa desconhecida. Está sepultado no Cemitério São Francisco de Paula, no lote 5 da quadra 112, em jazigo pertencente à sua família, onde também jazem seus pais, seu irmão e também atleta Castalgino dos Santos, seu cunhado e líder operário Julio Havrenne, além de outros familiares.
Trajetórias como a de Athayde Santos iluminam uma faceta, por vezes negligenciada, da dinâmica associativa negra no pós-abolição: o associativismo esportivo. Essa modalidade associativa se converteu em um importante espaço de organização de sujeitos negros no pós-abolição, que tiveram participação decisiva na popularização de modalidades esportivas, como o futebol, cuja prática inicialmente estava restrita às elites brancas. Menos estudadas que as agremiações mutualistas, carnavalescas ou que a imprensa negra, as associações esportivas proporcionavam um espaço raro de projeção social no mundo urbano da Primeira República e significaram uma possibilidade concreta de ascensão econômica para diversos indivíduos negros. Dado o alcance massivo e a dispersão geográfica que a prática esportiva atingiu nas primeiras décadas do século XX, essa modalidade associativa envolveu um número enorme de pessoas, extrapolando em muito os limites das frações mais organizadas e intelectualizadas da comunidade negra. Os clubes esportivos se converteram em ambientes de aprendizado, onde os atletas entravam em contato com noções básicas de educação física, cuidados com a saúde e tinham aulas de primeiras letras – uma vez que analfabetos eram impedidos de se inscrever nas ligas. Com estatutos confeccionados segundo a cultura organizacional de matriz liberal e republicana, as agremiações eram espaços de vivência dos ritos da democracia. Por meio delas, sujeitos por vezes excluídos da cidadania formal entravam em contato com todo um léxico e repertório democrático, com suas assembleias gerais, atas, votos, debates, mesas diretoras, comissões fiscais etc.
Espaços de poder e prestígio, os clubes esportivos também se tornaram agentes intermediários no contato entre essas populações e a grande imprensa, o poder público e as associações das classes mais abastadas, que invariavelmente estabeleciam alianças com os clubes de base popular, a fim de conseguirem votos e apoio nas reuniões das federações esportivas. Os clubes eram, ainda, um instrumento decisivo para a organização de festejos, bailes, encontros, excursões, enfim, uma série de atividades geradoras de laços de solidariedade e identidade, que transformavam o tempo livre em alguma coisa efetivamente prazerosa, que não se resumisse ao tempo de preparação para o trabalho. Enfim, são muitos os possíveis significados do associativismo esportivo. Diversos deles se entrelaçam na trajetória de Athayde Santos, um dos principais jogadores da década de 1920 e o árbitro paranaense com maior número de atuações até a década de 1970, que teve papel fundamental na ampliação dos espaços ocupados por indivíduos negros no interior do campo esportivo.
Equipe do Palestra Itália de 1926. Athayde é o segundo, em pé, da direita para a esquerda. Fonte: NETO, Carneiro. O voo certo: a história do Paraná Clube. Curitiba: S/E, 1996, p. 45.
Athayde dos Santos, em reunião na sede da Federação Paranaense de Futebol. Fonte: Paraná Esportivo. Curitiba, 24 de abril de 1946, p. 6.
Athayde Santos como árbitro da Federação Paranaense de Futebol. Fonte: Paraná Esportivo. 16 de abril de 1953, p. 1.
Verbete elaborado por: Jhonatan Uewerton Souza – Instituto Federal do Paraná – Campus Goioerê – março 2020
REFERÊNCIAS
Fontes:
A da Força e Luz e a Ação da Federação Operária do Paraná. Diário da Tarde. Curitiba, 29 dez 1933, p. 5.
Agradecimento e Missa. O Dia. Curitiba, 6 agosto de 1949, p. 5.
Casamento Civil. A República. Curitiba, 20 abril 1897, p. 1.
Desportos. Gazeta do Povo. Curitiba, 13 jan 1925, p. 5.
Desportos. Gazeta do Povo. 11 nov 1926. p 3.
Desportos. Gazeta do Povo. Curitiba, 17 jan 1927, p. 6.
Edital de Citação. Diário da Tarde. Curitiba, 20 jun 1981, p. 4.
Missa. Diário da Tarde. Curitiba, 2 jun 1941, p. 4.
Nota Social. Paraná Esportivo. Curitiba, 22 dezembro de 1958, p. 6.
O Dia Esportivo. O Dia. 22 mai 1930, p 7.
Relação de Eleitores Alistados na Quinzena 16 a 21 de Dezembro de 1928. A República. Curitiba, 02 de jan 1929, p. 2.
Sociais Esportivas. Paraná Esportivo. Curitiba, 27 ago 1953, p. 8.
Um Mau Vizinho. Diário da Tarde. Curitiba, 17 abr 1929, p. 8.
Bibliografia
CARDOSO, Francisco G. História do Futebol Paranaense. Curitiba: Grafipar, 1978.
MACHADO, Heriberto I. CHRESTENZEN, Levi M. Futebol Paraná História. Curitiba: Digitus, 1990.
NETO, Carneiro. O voo certo: a história do Paraná Clube. Curitiba: S/Ed, 1996.
SOUZA, Jhonatan U. O jogo das tensões: clubes de imigrantes italianos no processo de popularização do futebol em Curitiba (1914-1933). Dissertação em História – UFPR. Curitiba, 2014.